Painel/Debate: Encruzilhadas da guerra – caminhos para a paz

UM MUNDO QUE BALANÇA ENTRE A DESTRUIÇÃO E A REDENÇÃO

Pedro Caldeira Rodrigues (Jornalista e escritor)

                A invasão russa da Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, entrou em finais de julho passado no sexto mês, sem se vislumbrar uma saída negociada.

                Pelo contrário, as duas partes continuavam a radicalizar posições, com Kiev a ameaçar com contraofensivas generalizadas e Moscovo a assegurar que os objetivos militares não se iriam restringir à região do Donbas e zonas limítrofes.

                Uma guerra caracterizada pelo urbicídio (sistemática destruição de cidades e lugares), a fuga em massa das populações, anexações territoriais, preparativos de “contra-ofensivas”, tudo afinal parte de uma história mais vasta, porque uma guerra nunca surge do nada. Tem sempre causas, e terá sempre consequências. Pelo meio, o sangue, a morte, a resistência, as ameaças, a diplomacia, e os grandes negócios: do armamento, da energia, da alimentação, de novas tecnologias, da (des)informação…

                Alguns pontos que podem suscitar reflexão

1 – A caminho da destruição?

                O cenário estava em preparação e o rearmamento da Alemanha é talvez um dos aspetos mais surpreendentes. Em 2021, a Rússia despendeu cerca de 66 mil milhões de euros nas suas Forças Armadas, 4,1% do seu PIB. Mas a Alemanha, com uma população cerca de metade de Rússia, gastou 56 mil milhões (1,3% do PIB).

                Nesse mesmo ano, o orçamento para a Defesa dos EUA, que despende o equivalente a 38% do investimento à escala mundial (801 mil milhões de dólares em 2021) e dos quatro maiores países europeus da NATO (Reino Unido, França, Alemanha e Itália, e excluindo deste cálculo a Turquia, o segundo maior exército da NATO), ultrapassou em 15 vezes o orçamento da Rússia para esta área.

                O rearmamento da Alemanha, que se iniciou antes da invasão da Ucrânia pela Rússia e registou uma significativa aceleração deste então, constitui assim um dos principais dados a reter: num discurso em 27 de fevereiro, três dias após o início da intervenção militar russa, o chanceler Olaf Scholz, líder do Partido social-democrata (SPD) prometeu que a Alemanha “irá investir ano após ano mais que os 2% do seu PIB na Defesa”. Assim, determinou-se que 40 mil milhões de euros vão para a Força Aérea alemã, 19 mil milhões para a Marinha e 17 mil milhões para o Exército, enquanto 21 mil milhões de euros será despendido nas designadas “capacidades de comando e digitalização”, que inclui desde satélites a rádios digitais para as tropas. Um total de 100 mil milhões de euros.

                Para mais, a MNE alemã Annalena Baerbock, dirigente do partido Os Verdes que integra a coligação governamental com sociais-democratas e liberais, estabeleceu como prioridade a compra de 35 caças F-35, com capacidade para transportar bombas nucleares norte-americanas, com cada aparelho avaliado em pelo menos 100 milhões de euros.

                Em paralelo, os Estados Unidos, o Reino Unido, e ainda a Alemanha, decidiam intensificar o envio de sofisticado armamento para Kiev.

                Em meados de junho de 2022, um conselheiro do Presidente ucraniano assinalava para “ganhar” a guerra, o país precisava de pelo menos 1.000 howitzers de 155 mm (canhões de longo alcance), 300 lança-foguetes múltiplos, 2.000 veículos blindados de combate e 1.000 drones.

                Os EUA, que possuem bases militares em 85 países do mundo e permanecem os principais fornecedores nesta guerra por “procuração”, devem despender só em 2022 pelo menos 40 mil milhões de dólares de ajuda militar à Ucrânia, e tentam associar mais países ao esforço de guerra.

                Outra componente estratégica da entrega de armas à Ucrânia reside nos objetivos de guerra da Ucrânia e da forma como os seus aliados a podem influenciar. Quando mais material sofisticado receber, mais ambiciosos serão os seus objetivos políticos.

                Kiev rejeitou os acordos de Minsk de 2014 e 2015 e o designado “Formato Normandia”, o grupo de contacto formado pelos chefes de Estado e governo da Ucrânia, Rússia, Alemanha e França, para terminar a guerra no Donbas, e sem a participação dos Estados Unidos. Um acordo que previa a neutralidade da Ucrânia, a autonomia regional para as províncias russófonas, em particular o Donbas, e futuras negociações sobre o estatuto da Crimeia.

                Agora, os objetivos de guerra declarados incluem a expulsão de todas as forças russas, o regresso incondicional da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014, e das províncias secessionistas, e pelo menos a adesão à UE.

                Em paralelo, sobretudo Washington e Londres têm insistido que o objetivo da guerra é uma “vitória” sobre a Rússia que a “enfraqueça de forma decisiva” no plano militar e económico, e o julgamento de Putin e associados no Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia.

                Como tem notado o analista alemão Wolfgang Streeck, diretor do Instituto Max Planck para o Estuda das Sociedades, baseado em Colónia, a atual abordagem das principais potências direta ou indiretamente envolvidas no conflito implicará uma guerra de vários anos, mas sem a certeza de uma “vitória”. E o Governo ucraniano terá de pedir à população para aceitar perdas massivas de vidas para estes objetivos maximalistas.

                Esta escalada poderá mesmo implicar o recurso a outro tipo de recursos militares, de consequências devastadoras. Do ponto de vista legal, Moscovo considera a Crimeia parte integrante do território da Federação da Rússia após o referendo de 2014 que “legitimou” esta união. E qualquer ataque à Crimeia, será considerado um ataque a território russo, podendo implicar em última instância o recurso a armas nucleares táticas.

                A pressão dos EUA para o prosseguimento da guerra, com o objetivo de evitar regresso a um “novo Minsk” menos ambicioso e “derrotista” para Kiev, contraria os interesses da Alemanha ou França porque pode levar a Rússia a utilizar armas mais temíveis.

                Dmitri Medvedev, ex-chefe de Estado russo, atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia e aliado próximo de Putin, já se referiu ao “Dia do Juízo Final” no caso de uma ofensiva militar ucraniana para “reconquistar” a Crimeia.

                A vigilância mútua deixou, entretanto, de existir. Nos últimos anos, os EUA desmantelaram, passo a passo, a arquitetura de controlo de armamentos que tinham negociado com a ex-URSS e a Rússia (o ABM de 1972, o START II desde 2009, a retirada INF (forças Nucleares de alcance intermédio) ou mais recentemente, em 2018, o cancelamento do acordo de não proliferação nuclear assinado com o Irão em 2015).

                Em paralelo, emerge a China, que em 2021 já registou um gasto na Defesa que alcança dos 35% do despendido pelos EUA. E para a Europa, mas próximas a questão consiste em saber se apenas vão permanecer um mero auxiliar dos EUA na dupla tarefa de controlar a Rússia e envolver-se na iminente batalha com a China.

                Neste contexto, e na sequência da invasão militar da Ucrânia, que à semelhança de anteriores intervenções militares (na Sérvia em 1991, no Iraque a partir de 2003 ou na Líbia em 2011) constitui uma violação do “direito internacional”, não surpreende que o novo conceito estratégico da NATO aprovado na cimeira de Madrid em 29-30 de junho de 2022, defina a Rússia como a principal ameaça à segurança do ocidente e a China uma ameaça potencial.

                Ainda parece longe uma opção diplomática destinada a conter as atuais tensões com a Rússia e a China, mas a animosidade contra Pequim, iniciada com a administração de Barack Obama em 2011, foi na ocasião definida como um “não-começo”, que agora por motivos óbvios alastrou às relações com Moscovo.

                Pode-se também questionar se os países que fomentam conflitos e comprometem processos negociais em curso, mesmo com o argumento de estarem envolvidos numa luta “entre as democracias e as autocracias”, não deveriam ser judicialmente responsabilizados.

                À luz dos recentes desenvolvimentos na Ucrânia, talvez convenha recordar um caso que conduziu à destruição de um país. Foi a primeira guerra sangrenta na Europa após a Segunda Guerra Mundial e ocorreu na Jugoslávia durante a década de 1990.

                Antes do início das guerras jugoslavas, a Alemanha e a Áustria apoiaram ardentemente a secessão da Eslovénia e Croácia, mesmo sabendo que esta última independência implicaria uma revolta armada dos sérvios da Croácia e a guerra. E os Estados Unidos também apoiaram a independência da Bósnia-Herzegovina, mesmo sabendo que tal conduziria à guerra.

                Durante o processo do ex-líder políticos dos sérvios bósnios Radovan Karadzic no extinto Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ) em Haia, o diplomata português José Cutileiro recordou o seu projeto de paz de 1992 para a Bósnia-Herzegovina, assinado em Lisboa em 18 de março, antes do despoletar da guerra, e assinado pelos líderes das três “comunidades” (muçulmanos, sérvios e croatas bósnios).

                Mas em 28 de março de 1992, após um encontro em Sarajevo com o então embaixador dos EUA na Jugoslávia, Warren Zimmermann, Izetbegovic renunciou ao projeto e retirou a sua assinatura. O Governo norte-americano considerou que essa solução, nas palavras de Zimmermann, eram “um mau exemplo, em particular para os países provenientes da [dissolução da] URSS”.

                A guerra iniciou-se pouco depois, prolongou-se por três anos e meio, provocou mais de 100.000 mortos e cerca de dois milhões de refugiados e deslocados, e terminou com a assinatura dos Acordos de Dayton nos finais de 1995, também por pressão dos Estados Unidos e afinal com características semelhantes ao gorado “plano Cutileiro”.

2 – Os trabalhos de Zelensky e as ambições dos aliados

                O Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, que nas primeiras semanas do conflito ainda se referia à necessidade de negociar com a Rússia, alterou radicalmente a sua posição e tem vindo a manifestar o desejo de reconquistar todos os territórios perdidos, decerto sob a pressão dos seus “conselheiros” internos e externos, a par de uma progressivo reforço do aparato militar dos EUA e da NATO no seu flanco leste.

                Na sequência da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos estabeleceram um quartel-general permanente para o 5º Corpo do exército na Polónia; criaram brigadas de combate adicionais e rotativas na Roménia; indicaram deslocamentos de tropas rotativos para os Estados do Báltico; aumentaram o número de navios de guerra em Rota, Espanha; e enviaram dois esquadrões adicionais de F-35 para o Reino Unido.

                Estas decisões foram entusiasticamente recebidas pelos países da Europa de leste membros da NATO, mas suscitaram preocupações entre diversos membros ocidentais, em particular na França, Alemanha e Itália.

                No início da guerra, o Presidente Joe Biden disse que os EUA não procuravam “uma guerra entre a NATO e a Rússia”. Mas a decisão de fornecer artilharia pesada e defesa antiaérea de longo alcance à Ucrânia poderá contribuir para que Putin considere já estar em guerra com o ocidente.

                Com esta abordagem, Zelensky apostou uma dinâmica militar que condicionará a sua sobrevivência. Após a recusa de negociar com Moscovo, será a realidade da frente que ditará o seu destino.

                Assim, os seus eixos estratégicos obedecem a cinco imperativos:

1. Retomar os territórios através de uma vasta operação militar de contra- ataque;

2. Esgotar as forças inimigas, onde se incluem os exércitos das Repúblicas Separatistas russófonas de Donetsk e Lugansk e as forças russas;

3. Manter a aura e não deixar transparecer as divergências internas, apesar de diversas demissões, purgas, conflitos com o estado-maior militar;

4. Conservar a unidade ucraniana, mesmo que exista um limite para o sofrimento que parece não ter sido ainda atingido e em simultâneo ocultar as divergências entre as franjas que se opõem ou admitem uma concessão territorial, com as “forças pró-russas” totalmente silenciadas;

5. Por fim, convencer o ocidente, ao associar em permanência o desfecho da guerra ao destino da Europa.

                Diversos observadores têm apontado um caminho, mesmo que as suas vozes permaneçam minoritárias: a necessidade imperiosa de um cessar-fogo na Ucrânia, o reconhecimento de uma possível partilha para salvar vidas e infraestruturas ucranianas, e uma ampla discussão sobre estabilidade estratégica, em particular a estabilidade nuclear que englobe os EUA, Rússia e China.

3 – Vocação asiática

                “A Ásia é a nossa principal questão”

                “O russo não é apenas um europeu, mas também um asiático. E ainda mais: talvez existam mais esperança para nós na Ásia que na Europa. E mais: talvez a Ásia seja, nos futuros destinos, a nossa principal questão! […] A vitória de Skobelev[1]* [em Geok Tepe em 1881] vai originar um eco em toda a Ásia, até às suas fronteiras mais longínquas. Que possa mesmo chegar à Índia e na própria Índia estimular nesses milhões de indivíduos a certeza da invencibilidade do czar branco!”.

                                                                              Fiodor Dostoievski, Diário de um escritor (1873-1881)

                A progressiva degradação das relações entre a Rússia e o Ocidente a  partir do início da década de 2000, motivada em larga medida pela contínua expansão da NATO em direção a leste, permitiu o surgimento de estratégias de legitimação interna que também justificaram a progressiva rutura com o “ocidente” e uma viragem para a Ásia, uma vocação há muito presente no imaginário russo.

                “Apanhar o vento chinês nas velas da economia russa”. Esta frase de Vladimir Putin, num artigo escrito em fevereiro de 2012 e intitulado “A Rússia e o mundo que muda” já denunciava esta deriva, esta “pulsão” de um país com vocação euro-asiática, também expressa num contínuo e crescente reforço da parceria estratégica com a China.

                Assim, há mais de uma década que o Estado russo prossegue uma política de diversificação económica em direção ao continente asiático, para além da sua crescente influência em África. A “viragem para a Ásia” deverá permitir a uma Rússia, agora submetida a pesadas sanções ocidentais, beneficiar do dinamismo económico da China e dos seus vizinhos e diminuir a sua dependência face à Europa.         Neste contexto, a invasão da Ucrânia poderá implicar uma rutura duradoura com o Ocidente.

                Na prática, o mundo de Putin não é muito diferente do mundo da NATO, e as suas regras do jogo não são muito diferentes das regras do jogo norte-americano e euro-atlântico. A diferença é que atualmente se sente uma “ameaça”, um cataclismo mundial, ruturas, mas o mundo permanece mais ou menos tal como era.

                A diferença entre o comportamento da Rússia e da NATO não é de natureza, mas de grau. A Ucrânia não é a Sérvia de Milosevic, mas também não é um Estado democrático e social que garanta plenamente os direitos linguísticos, cívicos e nacionais todos os seus cidadãos, sobretudo aos que se sentem russos e falam russo.

                Enquanto persistir uma abordagem em que alguns se consideram “os únicos” a ter direito aos interesses geoestratégicos e de segurança, a zonas de influência, o mundo continuará a ser um local mais perigoso do que deveria.

4 – Fronteiras movediças

                Na língua eslava, Ucrânia significa “fronteira”. Não existe apenas uma “parte” russófona da Ucrânia, há também uma memória polaca, húngara, tártara, que se confrontava com o centralismo estatal.

                Viktor Orbán acusou Kiev de ingerência nas legislativas húngaras de 3 de abril de 2022, que voltou a vencer com maioria absoluta e referiu-se ao estatuto de inferioridade concedido à minoria húngara da Ucrânia.

                Uma especificidade que se relaciona com a relação “triangular” vigente do século XV ao XX, na qual a Ucrânia era o terreno de confronto do mundo eslavo católico polaco com o mundo eslavo ortodoxo, com um campesinato ucraniano submetido ao poder dos senhores polacos.

                Interessante verificar como, no atual contexto, a Ucrânia e a Polónia ultrapassaram este período, de forma excecional. E tratava-se de um antagonismo extremamente forte, semelhante ao que existia com os russos.

                A Polónia acolheu milhões de refugiados ucranianos e revelou-se um dos países da NATO mais empenhados no apoio militar a Kiev…

                Mas em 11 de julho de 2022, os líderes polacos assinalaram o massacre cometido por ucranianos durante a II Guerra Mundial e disseram que apenas “verdade total” sobre a violência do país vizinho, descrita como “genocídio”, pode reforçar os laços bilaterais no futuro.

                O Dia da Memória das Vítimas do Genocídio evoca a morte de civis polacos por ucranianos durante a após a II GM.

                Hoje, Varsóvia diz que a Ucrânia também combate em nome dos interesses polacos. Mas a violência que ocorreu entre 1942 e 1945 permanece um ponto de discórdia.

                Os historiadores referem-se à morte de mais de 100.000 polacos, incluindo mulheres e crianças, pelos vizinhos ucranianos numa deriva nacionalista em regiões então situada no sudeste da Polónia e que hoje estão na maioria em território ucraniano.

                Recordam o “Domingo Sangrento” de 11 de julho de 1943, que envolveu membros da Organização de Nacionalistas Ucranianos (OUN, extrema- direita nacionalista) – dividida a partir de 1940 em duas fações, a mais radical e aliada da Alemanha nazi dirigida por Stepan Bandera, também a principal figura do Exército Insurreccional ucraniano (UPA). Esta formação colaborou com o exército nazi perante o avanço dos soviéticos, para conter as ambições territoriais polacas, com o objectivo de manter a independência da Ucrânia durante a II Guerra Mundial.

                Nestes ataques coordenados, foram atacadas mais de 100 localidades quando a população polaca deixava as igrejas, em particular na região de Volhynia.

                A Polónia estabeleceu em 2016 este dia da memória (já em plena guerra civil na Ucrânia) e insiste num genocídio. Mas a Ucrânia considera oficialmente a OUN com uma organização de combatentes independentistas. A identidade da Ucrânia enquanto Estado soberano foi construída em torno desta organização.

                Dizem analistas locais e “pró-europeus”: para os nacionalistas polacos, no poder, manter esta ferida aberta apenas contribuirá para dividir os dois vizinhos em tempos de novo conturbados, e em última instância “servir os interesses de Moscovo”.

5 – Regresso ao não-alinhamento ?

                A guerra contra a Ucrânia, atroz e imperdoável, motivou que a Rússia fosse condenada por quase todo o mundo. Mas não ficou isolada, ao contrário do que pretendia o ocidente.

                No atual cenário, perspetiva-se que a Europa continue a perder a sua centralidade e será um mundo fraturado e dividido que se arrisca a sair com o fim da guerra na Ucrânia. Um mundo multipolar, onde as desigualdades entre algumas potências dominantes e os seus vassalos poderão acentuar-se.

                A tentativa de “reanimação” do “não-alinhamento” na ordem mundial poderá ser um contrapeso a esta dramática perspetiva.

                Após cinco meses de conflito, os países ocidentais não conseguiram isolar a Rússia, e alguns analistas têm admitido que esta guerra pode ser o catalisador para que o Movimento dos não-alinhados ressurja das cinzas.

                Em 2 março 2022, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução que condenou a “agressão” contra a Ucrânia, e apenas cinco países votaram contra: Rússia, Bielorrússia, Síria, Eritreia e Coreia do Norte. Mas 35 abstiveram-se, China, Índia, a maioria dos países de África, representando no conjunto a maioria da população mundial.

                Em paralelo, e a par da “crise energética”, surgia a “crise alimentar” motivada pelo alegado bloqueio de cereais ucranianos, aparentemente ultrapassada após mediação da ONU e da Turquia.

                A África como “refém” do conflito na Ucrânia tornou-se assim uma aposta falhada de Zelensky, confirmada pela deslocação em finais de julho de 2022 a diversos países africanos do chefe da diplomacia russa, Serguei Lavrov.

                Para muitos destes países, em África, na Ásia, na América Latina, prevalece a desconfiança face ao ocidente pelas intervenções no Afeganistão e Iraque, ou a forma diversa como se acolhem os refugiados.

                E os combates a promover pelos países mais pobres do planeta são numerosos, como a luta contra as alterações climáticas ou a regulamentação da finança internacional.

                Um eventual regresso à política do “não-alinhamento” pode residir na Sérvia. Belgrado apoiou resolução da ONU que condenou a invasão russa devido ao precedente do Kosovo, como muitos outros Estados ameaçados por reivindicações secessionistas, mas recusou aplicar as sanções contra Moscovo.

                O ativismo diplomático de Belgrado junto da Organização Conferência Islâmica e da União Africana é herdeiro das redes construídas na época do não-alinhamento, onde a antiga Jugoslávia
fundada por Tito tinha uma posição determinante.

                A crescente crítica ao primado do liberalismo através da constituição de alianças, as pressões destinadas a impulsionar uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, o regresso aos princípios do não-alinhamento começam a ser considerados “mais necessários que nunca” no contexto da guerra na Ucrânia.

                E os não-alinhados procurariam redefinir as relações internacionais com base na “soberania, independência, direito à autodeterminação e respeito pela integridade territorial de cada um”, mas também sobre no “desarmamento geral e a resolução pacífica de conflitos”.

                Em Outubro de 2021, a conferência que decorreu em Belgrado celebrou os 60 anos do movimento dos não-alinhados emitiu um forte apelo para uma acesso mais justo e equitativo às vacinas contra o covid-19. E os contactos têm prosseguido entre várias capitais. Um desenvolvimento que poderá merecer alguma atenção, num mundo em acelerada recomposição geopolítica.

PCR / Julho 2022


[1] Referência ao general russo Mikhail Skobelev, famoso pela sua conquista da Ásia Central e o desempenho na guerra russo-turca de 1977-78.

Um comentário sobre “Painel/Debate: Encruzilhadas da guerra – caminhos para a paz

  1. Muito interessante este teu artigo. Permite que te recomende dois excelentes artigos:«Culpa e expiação da literatura russa», de um excelente escritor russo, Mikhail Shishkin, no Expresso de 5 de Agosto , página 29 do Primeiro Caderno, e o excelente artigo do nosso colega de faculdade e amigo, Francisco Bethencourt, «Equivalências históricas», no Público de 20 de Junho, pág. 8.Também interessante o artigo de João Ruela Ribeiro, «Rússia declara regimento Azov como »organização terrorista», 3 de Agosto, pág. 20. Abraço e muitas felicidades

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