Falecido aos 77, filósofo italiano deixa legado para pensamento marxista. Aqui, as palavras finais de “O marxismo ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer”, seu último livro
Por Domenico Losurdo, no Blog da Boitempo
Oriente e Ocidente: do cristianismo ao marxismo
Nascido no coração do Ocidente, com a Revolução de Outubro, o
marxismo se difundiu por todo o mundo, penetrando com força em países
e áreas em condições econômicas e sociais mais atrasadas e com uma
cultura muito diferente. Tendo atrás de si a tradição judaico-cristã, o
marxismo ocidental, como vimos, não poucas vezes evoca motivos
messiânicos (a espera por um “comunismo” concebido e sentido como a
resolução de todos os conflitos e contradições e, portanto, como uma
espécie de fim da história). Mas o messianismo está francamente ausente
numa cultura como a chinesa, em geral caracterizada, em seu
desenvolvimento milenar, pela atenção reservada à realidade mundana e
social.
A expansão planetária do marxismo é o início de um processo de
distanciamento, que é a outra face de uma retumbante vitória. É aquilo
que historicamente se verificou no caso das grandes religiões. No que se
refere ao cristianismo, que não por acaso Engels insistentemente compara
com o movimento socialista, a divisão entre ortodoxos, de um lado, e
protestantes e católicos, de outro, corresponde, grosso modo, à divisão
entre Ocidente e Oriente. A certa altura, entre o fim do século XVII e o
início do século XVIII, o cristianismo parecia prestes a se expandir
amplamente também no Oriente asiático: gozavam de grande prestígio e
exerciam notável influência na China os missionários jesuítas, que
levavam consigo conhecimentos médicos e científicos avançados e, ao
mesmo tempo, se adaptavam à cultura do país que os hospedava,
rendendo homenagem a Confúcio e ao culto dos antepassados.
Porém, diante da intervenção do papa em defesa da pureza originária da
religião cristã-católica, o imperador chinês reagiu fechando as portas do
Império do Meio aos missionários. O cristianismo era bem-vindo quando
aceitava sua significação e promovia o desenvolvimento científico, social e
humano do país em que era chamado a operar; era, no entanto, repelido
como corpo estranho quando visto como uma religião que promovia uma
salvação sobrenatural nem um pouco respeitosa com a cultura e os laços
humanos e sociais vigentes no país em que se encontrava.
Algo semelhante aconteceu com o marxismo. Já com Mao, o Partido
comunista chinês promoveu a “significação do marxismo” e com isso
ganhou impulso para a luta de libertação do domínio colonial, para um
desenvolvimento das forças produtivas capaz de possibilitar a realização
da independência também no plano econômico e tecnológico, para o
“rejuvenescimento” de uma nação de civilização milenar, submetida pelo
colonialismo e pelo imperialismo ao “século de humilhações” iniciado com
as guerras do ópio. Longe de ser negada, a perspectiva socialista e comunista é orgulhosamente proclamada pelos dirigentes da República
Popular da China: tal perspectiva, porém, está despida de todo caráter
messiânico; além disso, sua realização está ligada a um processo histórico
muito longo, no decorrer do qual a emancipação social não pode ser
separada da emancipação nacional. E, de novo, o repúdio provém do
Ocidente, guardião da ortodoxia doutrinária, do marxismo ocidental.
Este, agora, fustiga o marxismo oriental, que é pintado como desprovido
de credibilidade e, portanto, banal do ponto de vista de um marxismo
fascinado pela beleza do futuro remoto e utópico que ele mesmo evoca, e
cujo advento parece ser independente de qualquer condicionamento
material (quer se trate da situação geopolítica ou do desenvolvimento das
forças produtivas), por ser determinado exclusivamente ou de modo
absolutamente prioritário pela vontade política revolucionária.
O desencanto, o distanciamento, a cisão de que aqui se fala não visam
somente a China: seguido pelo marxismo ocidental com atenção partícipe
e apaixonada enquanto opunha resistência épica a uma guerra colonial de
décadas que teve como protagonistas, primeiro, a França, depois, os
Estados Unidos, embora hoje quase sepultado no esquecimento, é o
Vietnã que está empenhado na prosaica tarefa da edificação econômica. A
própria Cuba já não suscita o entusiasmo dos anos em que lutava contra a
agressão militar executada (sem sucesso) em 1961 e por longo tempo
preparada por Washington. Agora que o perigo da intervenção militar
passou a ser remoto, os dirigentes comunistas de Cuba almejam reforçar
a independência no plano, também e sobretudo, econômico, e para
alcançar esse resultado sentem-se obrigados a fazer algumas concessões
ao mercado e à propriedade privada (inspirando-se de modo bastante
cauteloso no modelo chinês). Pois bem, a ilha, que já não se assemelha à
utopia em pleno desenvolvimento, mas se revela às voltas com as
dificuldades próprias do processo de construção de uma sociedade pós-
capitalista, mostra-se bem menos fascinante aos olhos dos marxistas
ocidentais. Quando estava em seu estágio inicial, aquele da luta militar
pela independência política, a revolução anticolonial raramente suscitou
no marxismo ocidental a atenção empática e o interesse teórico que ela
merecia; agora que a revolução anticolonial está em seu segundo estágio,
o estágio da luta pela independência econômica e tecnológica, o marxismo
ocidental reage com uma postura marcada pelo desinteresse, pelo
desdém, pela hostilidade.
A cisão entre os dois marxismos se deu pela incapacidade do marxismo
ocidental em reconhecer a guinada da guinada ocorrida no século XX.
Enquanto se adensam as nuvens de uma nova grande tempestade bélica,
tal cisão se mostra ainda mais lamentável. É hora de dar cabo dela.
Naturalmente, nem por isso se dissiparão as diferenças que subsistem
entre Oriente e Ocidente no que se refere à cultura, ao estágio do
desenvolvimento econômico, social e político, e às tarefas a serem
enfrentadas: no Oriente, a perspectiva socialista não pode abrir mão de
concluir, em todos os níveis, a revolução anticolonial; no Ocidente, a
perspectiva socialista passa pela luta contra um capitalismo que é
sinônimo de aprofundamento da polarização social e de crescentes
tentações militares.
No entanto, não vemos motivos para a transformação de tais diferenças
em antagonismo. Sobretudo agora que a excomunhão do marxismo
oriental pelo marxismo ocidental promoveu o fim, não do excomungado,
mas do excomungador. A superação de todo comportamento doutrinário e
a disponibilidade de se confrontar com o próprio tempo e de filosofar em
vez de profetizar são a condição necessária para que o marxismo possa
renascer e se desenvolver no Ocidente.
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Domenico Losurdo nasceu em 1941, na Itália, e foi Professor de História
da Filosofia na Universidade de Urbino. No Brasil lançou, pela Boitempo, A
linguagem do império: léxico da ideologia estadunidense (2010), A luta de
classes: uma história política e filosófica, Guerra e revolução: o mundo um
século após Outubro de 1917 (2017) e o mais recente O marxismo
ocidental: como nasceu, como morreu, como pode renascer (2018).
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