Abordar o problema da informação é colocar-se no epicentro de uma realidade sociológica com vários vulcões activos. A importância da informação- como um direito universal humano- é uma das questões que, de algum modo, esteve sempre atracada a uma outra, a da liberdade.
Se olharmos retrospectivamente e sem grandes ambições sistemáticas,verificamos que a informação, na sua relação complexa e periclitante com o conhecimento, foi um dos vectores importantes, se não mesmo fundamental, da progressiva revolução, passe a contradictio in adjecto, que acompanhou a emergência da modernidade, a partir do século XVII, suportada quer por uma revolução do conhecimento, assente na ciência e na técnica, cujo expoente vem a ser a designada Revolução Industrial, e na filosofia e na política, cujo vórtice acaba por ser a Revolução Francesa.
Aliás, o Iluminismo, essa cruzada pela libertação do homem da sua menoridade e da sua ignorância, tal qual o formula Kant, é uma visão que, na procura do progresso cultural, intelectual e social, reivindica instrumentos operacionais importantes, como o livro e o surgimento dos jornais. É sabida a importância que estes tiveram na disseminação das novas ideias que levaram ao racionalismo militante das ideias políticas da Revolução Francesa, assim como no século XIX, ao alastramento das ideias liberais. Quando Hegel afirma que “a leitura do jornal é a sua oração matinal”, estamos bem dentro desta visão que, no século XIX, deu azo ao surgimento de associações, muitas até de índole operária, que substituíram o catecismo religioso, para me socorrer de Auguste Comte, pelo catecismo positivo, dos factos, nessa visão científica e experimental do social, que vai estruturar cada vez mais a evolução das ideias, suportada por revistas, mas não só, de divulgação política, filosófica e científica, com um boom acentuado no final do século XIX, prenunciando o que irá ser uma das mudanças centrais da informação e dos seus mecanismos no século XX, os mass media.
O surgimento de meios de informação e comunicação capazes de chegar a todas as pessoas,a todos os lados, a todos os espectros sociais, assente numa aceleração vertiginosa tecnológica, gerou alterações profundas na forma como os dados e a sua organização passaram a ser transmitidos e absorvidos, ainda para mais num caleidoscópio de meios, palavra escrita, som, imagem que se tornaram num cocktail informativo, complexo e absorvente. Hoje, uma notícia de um telejornal televisivo usa, como texto, pouco menos do que uma página escrita de um jornal sobre a mesma notícia e, claro, a twiterização informativa é hoje o”reader’s digest” de todas as notícias, aliás, a sua matriz cada vez mais incontornável,usada e abusada, num processo alienante e esvaziante, onde o assunto se tornou mera opinião, sem qualquer desenvolvimento ou fundamentação, muitas vezes maquilhada por uma imagem, ela própria esvaziada de contexto.
Da rádio à televisão e desta ao universo digital e das redes sociais, a procissão incessante tecnológica trouxe uma espécie de realidade informativa non-stop, uma ubiquidade e omnipresença, capazes de, por um lado, dar a sensação e a ilusão de uma efectiva e profunda experiência informativa, mas, por outrolado, criar um stress informativo, um excesso quantitativo, baixando drasticamente a inteligibilidade e compreensão da informação,o que serve, por vezes, uma estratégia de desinformação. O excesso informativo gera o caos informativo, criando uma incapacidade de análise e fomentando um vazio crítico, pela ausência de um tempo necessário a uma maturação analítica. Na verdade, na actualidade, a informação é cada vez mais uma sucessão e um processamento interminável, pouco estruturado e com fraco sentido, de dados que fazem apelo a uma memória operacional de curto prazo e não a uma memória profunda e substancial, de longo prazo. A velocidade e a fugacidade tornaram-se numa espécie de estado quântico da matéria informativa, gerando um princípio de indeterminação e incerteza que corrói a confiança nas fontes, nos processos e nos próprios actores do processo.
A digitalização da informação, enquanto expressão de um consumismo informativo, é um dos esteios do próprio capitalismo consumista, que transforma a “informação” em mais uma mercadoria, apoiado no próprio consumismo de aparelhos tecnológicos, mercadorias fetiches de consumo, apanágio e aparato de uma sociedade que vive de uma idolatria tecnológica, geradora de uma dependência cada vez mais viciante e visceral .
A digitalização, a velocidade das redes,assentam numa maior discriminação tecnológica proveniente das enormes diferenças económicas no mundo, propiciam, por outro lado, um lote e uma elite diminuta de empresas todo-poderosas, que se transformaram em donos de impérios globais, que uniformizam e manipulam a informação e o acesso a ela,criando processos altamente perigosos de censura implícita, mecanismos de controle a montante, e explícita, mecanismos de controle a jusante. Assistimos hoje a processos de censura,controle e manipulação tecnológica e ideológica, que roçam a fronteira de tiques autoritários, se não mesmo, espasmos para-ditatoriais. Os famosos algoritmos, o poder sancionatório, discricionário de exclusão de pessoas, de informação, que as empresas das redes sociais hoje têm, exigem uma regulação e regulamentação atenta e democrática, sob pena de se passar a viver num universo virtual concentracionário, uma realidade cada vez mais submetida a mecanismos mercantis, consumistas, criando um estado indistinto em que tudo se equivale, esvaziados de todas a dimensão formativa,crítica e aberta, que deve “informar” a verdadeira informação.
Para além da parafernália infernal de novos meios de informação, esta está contaminada também por duas dimensões: a do espectáculo e a da publicidade. Já Aristóteles afirmava, mais ou menos, que a informação exposta nas circunstâncias as mais chocantes é aquela de que o público se lembrará mais. O espectáculo, a publicidade são feudos fundamentais do consumismo que para além da alienação do trabalho geram uma nova alienação, como foi enunciada por Guy Debord, a alienação do consumidor e espectador,criando uma nova ditadura global, a da economia, intensiva e extensiva,para me socorrer das suas palavras.
A indústria, o espectáculo e a economia da informação, apertaram o torniquete à diversidade informativa, uniformizaram os processos informativos, estrangularam e estrangulam as fontes- hoje representado pelo crivo das agências noticiosas no mundo que afunilam e criam uma perigosa hegemonia sobre o que deve ser noticiado, num quase copy e paste de notícias-, dificultando um jornalismo crítico e profundo, manietando igualmente a investigação, considerada longa e pouco “lucrável”.
A digitalização, que empurrou os jornais, as rádios, as televisões para “a feira da ladra”que é a internet, onde tudo se torna igual, na famosa apregoada “democratização” que ela representa, mas que rapidamente se tornou pasto para um populismo de todo o género, noticioso, político, cultural, constitui um dos maiores desafios do futuro, já que ela veio para ficar e para modificar definitivamente a nossa relação com o mundo, com a realidade, connosco próprio.
Que não se entenda que esta análise sofre de uma espécie de saudosismo passadista- todos estes aspectos já existiam com as tecnologias anteriores-, mas a verdade é que não tinham a capacidade predatória de apoderação e disseminação ínsita ao admirável novo mundo do digital. E, sobretudo,que não se entenda neste retrato-robot, ( talvez no futuro tenhamos robots informativos e noticiosos capazes de se insinuar e de nos insinuar numa realidade imersiva, numa multisensorialidade puramente virtual), não se entenda,dizia, um retrato exclusivamente niilista destes tempos. Há aspectos inegavelmente positivos que a digitalização e a internet, como seu expoente máximo e global, trouxeram, desde logo,a propalada “democratização” da informação, que permite a publicação de dados e notícias que são recusados por meios mais institucionais, a rapidez da mesma e a possibilidade de expressão pessoal e aberta que as redes sociais propiciaram, ainda que com falhas evidentes. A socialização proporcionada por elas mudou as sociedades, expôs fracturas e limites destas, mas atravessou a medula da relação social, criando uma necessidade de uma nova reflexão filosófica, ética e política sobre as relações humanas.
Face a este quadro traçado, a esta informação que não é per se conhecimento, como nos diz a frase de Einstein usada em epígrafe, a única forma de combater os perigos elencados subjacentes ao “dilúvio” informativo destes novos meios, é justamente fomentar uma educação na interpretação e no conhecimento da informação. No fundo, desenvolver uma política educacional e cultural forte e sólida dos conhecimentos, todos eles, promover um método e um capital de reflexão crítica, ensinar, ou melhor, levar a pensar de forma livre, crítica e autónoma. Como se costuma dizer, hoje uma criança chega à escola com milhares de horas de televisão e de internet, com cérebro que parece funcionar como o motor de pesquisa da google ou o telecomando da televisão. Estudos mostram que a “net” neuronal é cada vez mais uma interface com a ”net”digital, abrindo portas para alguns delírios de ficção científica, que não devem ser encarados de ânimo leve.
Face a este panorama, as políticas educativas e culturais, sem desprezar, bem pelo contrário, as virtudes dos mecanismos da internet, devem apostar no desenvolvimento dos conhecimentos, científicos e culturais, e criar uma identidade crítica forte. Para isso, embora se saiba que a tentação política dos governos vá muitas vezes em direcção oposta, há que se construir uma democracia exigente e efectiva, não meramente formal, mas também e sobretudo económica, capaz de debelar as injustiças sociais que afectam e atravessam fatal e irremediavelmente as sociedades, como a sua depauperação. A pobreza, que tem crescido nestes períodos de crises à custa do aumento das fortunas, é uma das dimensões mais antidemocráticas do mundo, um paiol explosivo de exploração, subjugação, de manipulação, no fundo, um terreno seco e rapidamente inflamável para uma informação sem conhecimentos, isto é, o exercício de um fogo-posto nas mentes e vidas das pessoas. A justiça económica, social, educativa e cultural é a única forma de extinguir esse incêndio ou, pelo menos, criar alguns corta-fogos capazes de impedir o seu alastramento. E garantir uma informação livre, na verdadeira acepção da palavra, uma informação sujeita a um conhecimento crítico e ao exercício de uma soberania individual e colectiva independentes. Uma informação sem liberdade é uma informação vazia, nula e uma liberdade sem informação é uma liberdade cega, ambas altamente perigosas,destrutivas e potenciais expressões de tirania.
José Esteves, professor